Comemoração do centenário de emancipação da minha cidade, Barra do Piraí. Era 10 de março de 1990. Festividades em geral. Shows na praça, gincanas, festas, cerimônias e ao final, uma célebre meia-maratona que percorreria todo o centro da cidade e alguns bairros vizinhos, uns vinte quilômetros, no máximo. Eu, com toda a minha jovialidade dos 15 anos inscrevi-me na tal corrida. Não sei até hoje o porquê. Apesar da idade, eu era extremamente sedentário e nem bola no campinho eu jogava ( ver JOGADOR DE VÁRZEA FRACASSADO). Não sabia o que estava fazendo lá, de bermuda, camiseta, short, tênis e um pano com um número costurado na camiseta, mas estava. Franzino, destoava dos demais competidores que, já adultos, com certeza iam me dar trabalho. Minha família inteira ao lado de fora do cordão de isolamento gritava o meu nome. Centro da cidade lotado. Palanque com as autoridades: prefeito, vereadores, secretário de esportes, o escambau. De repente, minutos antes de dar o sinal de largada, vi uma das minhas tias dirigindo-se ao palanque dos figurões e cochichando com uma moça que vai em direção ao prefeito. Sem mais nem menos o prefeito interrompe o discurso e aponta pra mim. Gelei.
- Nossa cidade, nos seus cem anos, ainda é uma cidade jovem, cheia de esperanças e de futuro, tal como o jovem ali que, com apenas quatorze anos, que é o maratonista mais jovem daqui. Sintamo-nos, todos os moradores dessa magnífica cidade, representados por essa determinação da juventude que vemos com tanto orgulho. Aplaudam o futuro da nossa cidade, o jovem Alexandre Coimbra!
Dezenas, centenas de dedos apontando pra mim, todos, milhares de pessoas, olham pra minha direção e começam a aplaudir. Minha pernas tremeram. Puta responsabilidade ser uma espécie de representação do bem-sucedimento futuro da cidade. Eu meio que era obrigado a ganhar aquela merda, pensei.
- Né quatorze não, caralho! Eu tenho quinze anos porra!
Minha família, quase toda chorando de orgulho. Eu já puto da vida.
- Todos preparados que será dada a largada! – disse um cara com um revólver na mão.
“Atira no meio do meu peito ô filho da puta. Quero morrer!”
PUM!
Correria tumultuada. Centenas de pessoas se empurrando violentamente. Eu, minguado e franzinho, pra lá e pra cá, como um boneco de pano, em meio às cotoveladas dos marmajões. Chamei na canela. Me empolguei. Nos primeiros dois quilômetros fiquei entre os cem primeiros. Comecei a me cansar. Pernas pesadas. Conforme eu ia passando pelas ruas, uma porrada de gente vinha na minha direção derramando, sem que eu pedisse, garrafas d’água na minha cabeça. Uma água gelada pra caralho. Neguinho que eu nem conhecia gritando meu nome. Uma senhora gorda e branca aos berros na minha direção:
- Vai lá futuro da cidade! Nossa esperança está contigo!
E taca, também, mais uma porra de uma água gelada na minha cara.
- Vai tomar no cu velha filha da puta! Enfia essa garrafa d’água gelada no rabo!
Começa uma dor insuportável do lado do meu abdômen. Parecia que uma faca tava atravessando meu baço. Pernas pesadas. Segurei as passadas, fui um pouco mais devagar. Muitos corredores passando por mim.
- Vai lá cara! Supere os próprios limites! – gritou um coroa me entregando outra garrafinha dágua.
Joguei a garrafinha de volta na direção dele.
- Superação dos próprios limites é a casa do caralho! Vem cá ô velho desgraçado correr nessa merda! Puta desgraça! Tô todo dolorido! Tô testando é o limite da minha paciência!
E mais e mais corredores passando voados por mim. Comecei a ter tonteiras. Puto, dor no baço, joelho latejando olhei pruma plaquinha que tava escrito “Maratona do Centenário – faltam 14 km pro final”. Putamerda, eu não tinha chegado nem na metade da porra e tava todo fudido. Quê que eu to fazendo aqui? Porra sem lógica ficar correndo. Correndo atrás de quê? Começou a me dar uma vontade de chorar. Já tinha gente que tava voltando lá do final do retorno e cruzando por mim. Eu indo ainda, pra dar ainda a voltona que eles já tinham dado. Os caras com a cara vermelha, bufando, desesperados. Superação dos próprios limites ? Deixa meus limites quietos. Que bosta sem sentido! Eu pensava enquanto corria bem devagar, quase andando. Resmungando sozinho:
- Porra pra casa do caralho essa merda de ficar correndo igual maluco. Esporte é uma merda! Só serve pra deixar neguinho frustrado com a derrota depois de meses de treino. Se alguém ganha, uma porrada perdem. E se cansam pra cacete pra no final acabar perdendo! Pancada na auto-estima do otário! Se é pra me sentir fracassado, que seja descansado, sem o corpo dolorido! Isso não é comigo não, caralho! Tô fora!
E numa unhada arranquei a porra do número que tava colado no meu peito. Desviei-me da rota da maratona sem que ninguém percebesse ( também, como eu já estava entre os últimos, já não tinha quase ninguém perto de mim...). Sai numa rua deserta e parei no primeiro botequim que eu vi.
- Me dá uma cerveja e um cigarro aê mermão!
[ está estranhando eu beber e fumar já tão jovem? Ver AMIGO OCULTO FRACASSADO ]
O gordo do balconista do botequim querendo botar areia.
Quantos anos você tem moleque?
- Idade suficiente pra saber que esporte é coisa pra otário masoquista! Me dá aê a porra da cerveja e um varejo aê caralho!
O cara foi com a minha cara. Sentiu firmeza no meu lero. Colocou a cerva no balcão, dei um gole grande no gargalo mesmo e acendi o cigarro dando uma tragada gostosa e profunda. Me senti perfeitamente bem. Tomei mais umas duas cervejas e saí cambaleando fumando um cigarro em direção ao centro, à linha de chegada. Cortei caminho e cheguei a tempo de ver de trás de uma árvore escondido o último colocado chegando esbaforido.
Percebi que todos estavam esperando a retumbante chegada do mascote representante do “futuro da cidade”. Olhei pra minha família lá longe que , sem entender, estava me esperando.
- Cadê o moleque? O futuro da cidade? – gritou um cara ( devia ser da oposição) pro palanque do prefeito.
Todos gritando. Eufóricos. A superstição predominava geral. O povo foi se espalhando sem esperança no futuro. Acho que era isso.
Escondido, ninguém tinha me visto. Dei outra tragada gostosa no cigarro e voltei pro botequim.
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