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sábado, 27 de dezembro de 2008

CARTA A UM JOVEM MERDA

(escrito num botequim da Lapa, no Rio de Janeiro, em 2004)

Por que eu odeio? Porque sim, porra! Odeio! Odeio essa gentinha com talco no suvaco que freqüenta hoje a Lapa. Vêm com as suas camisas do Che Guevara, encher o saco sobre Madame Satã, sobre a “diversidade de tribos da Lapa”, sobre Nietzche. Tão achando que aqui é o Baixo Leblon. Essa corja que vem pra cá, freqüentadora daqueles botequins-butique tipo aquele Jobi que é o ponto de encontro da turminha pós-praia ou dos autodenominados boêmios zona sul. Banalizaram o termo. Qualquer bundinha pode ser boêmio hoje, e saem lá desse caralho desse ambiente e vêm encher o saco aqui. Odeio a turminha do chorinho. Odeio a turminha do “samba de raiz”. Odeio.

Lapa no fim dos oitenta e começo dos noventa é que era uma boa. Só birosca bagaceira sem palyboy nenhum pra encher o saco. Tinha um ou outro show no, então decadente, Circo Voador. Tava bom assim. Mas tudo mudou quando o João Gordo xingou o então prefeito Luis Paulo Conde em pleno show do Ratos de Porão em 96, que em retaliação fechou o Circo Voador. Eu tava lá. Todo mundo achou do caralho a atitude punk do gordo e eu pensei:

“ Porra, já até sei o que que vão fazer com a Lapa, vão, num sensacionalismo do caralho, usar esse episódio, o do fechamento do Circo, como pretexto pra fazer manifestos e tentar revitalizar o dito “reduto boêmio carioca”, e vai vir uma playboyzada do caralho pra cá!”

Dito e feito! Reformaram o Circo, abriram uma porrada de bares de “ Samba e Chorinho”. Acabaram com as biroscas dos travecos. Visual “clean” pra grigo ver. Ce acredita que tem até moleque de terno branco e chapéu panamá passeando estilo “malandro da lapa dos anos trinta”? Vai pro caralho. Se der uma navalha na mão desses almofadinhas ele tremem de medo.

Tá uma merda isso aqui hoje.Não se pode ficar tranqüilo tomando um gelo sem ter alguém que me irrite profundamente. Tem sempre algum peça querendo dar uma de malandragem sambista. Passaram a adolescência inteira ouvindo U2 e Legião Urbana, essas merdas, e agora querem dar uma de velha guarda da Portela. Pau no cu.

Odeio os zona sul que comem o Angu do Gomes e lambem os beiços na frente do amigos, se mostrando por um momento “ um suburbano legítimo”, pra depois vomitar escondido. Já vi essa parada acontecer. Escroto. Não é?

Tripa Lombeira com bastante pimenta no rabo deles pra ver o que é bom pra tosse. Não é? E rabo-de-galo pra abrir o apetite. Angu do Gomes no prato sujo. Churrasquinho cheio de nervo comprado ali do lado da Rodoviária Novo Rio, num pratinho com farofa, pra testar o estômago sensível da corja da “intelligentsia carioquinha”.

Se fuder!

Não é?

Odeio camaradinha “cabeça” que distribui livretinho de poema feito à mão e se diz poeta. Poeta marginal em pleno século vinte e um tinha era que estar na cadeia. Parada datada. Lugar de marginal hoje é no xilindró. Odeio os descendentes da turma do Cazuza no Baixo Gávea. Aquela chatice de desbunde já era escrota lá pros anos oitenta, imagina agora. Baixo Gávea, Baixo Leblon. Baixo isso, baixo aquilo, mas quando pinta uma baixaria à vera por aqui, eles correm pra barra da saia da mãe.

Aqui era o lugar dos meus pares: puta, vagabundo, viciado em carteado, viadada se punhetando no banheiro, pivete vendendo amendoim, cachaceiro com cirrose implorando dose de pinga. Minha gente. Gente sincera que vive de verdade e não fica cagando regras. Por isso odeio quem odeia a minha gente.

Odeio artista plástico contemporâneo. Odeio bandinha recifense que faz sucesso. Odeio essa merda de Afroreggae Odeio quem carrega violão, pra aqui pra birosca e fica tocando sempre o mesmo repertório. Cartola, Noel Rosa, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres. E pensa que merece aplauso, porque acha que é músico só porque toca essas porras das antigas e que merece silêncio e atenção solene, e ainda faz carinha feia quando a gente não tá prestando atenção. Vai tomar no cu!

Vai tomar no cu mais ainda a turma da poesia e do cinema.

Se tivesse realmente alguém talentoso não tava aqui, produzindo poesia a toque de caixa. A troco de caixa de cerveja, melhor dizendo.

Eu sei, sou fudido, segundo grau completo. Técnico em controle de qualidade de uma fábrica de papel higiênico na baixada. Leio relativamente pouco, só li três livros: Nossa Senhora das Flores do Jean Genet; Trópico de Câncer do Henry Miller e Malagueta, Perus e Bacanaços do João Antônio. Uma coroa que eu tava comendo ano passado, professora da UFRJ, que deus esses livros pra mim e disser que eu ia adorar, e acertou, eu não quis ler mais nada. Só esses me bastam. Fico relendo. Não conheço muito de literatura, nem de política, nem de sociologia e muito menos de filosofia, mas arvoro-me o direito de teorizar sobre essa turminha de intelectuais, poetas e filósofos que vem atrapalhar a gente a tomar a nossa Brama em paz.

A teoria é a seguinte, vê se você concorda comigo:

Um jovem médico pode ter as suas filosofices. Não é?
Um jovem pedreiro pode ser dado a especulações intelectuais, quando quiser, em uma mesa de bar. Não é?
Um jovem técnico de informática pode escrever um poema, de vez em quando, pra a sua esposa. É ou não é?
Porém, peça para um jovem intelectual levantar um muro ( não de palavras, mas de tijolos!) firme, reto, que não caia. Diga para um jovem poeta desses que ele terá que suturar um corte, com agulha, linha. É provável que, num chilique, ele desmaie em cima da pessoa ferida machucando-a mais ainda. Veja se um jovem filósofo é capaz de descobrir e resolver um problema de hardware no seu computador.

Cê sabe, como eu, que é impossível. Não é?

Agora, raciocina comigo: para que um jovem possa tornar-se um pedreiro, um médico ou um técnico de informática é necessário rigor. Rigor teórico ( formação técnica, no caso do da informática e acadêmica no caso do médico) e prática para essas três profissões ( muita prática no caso do pedreiro). Acerto e erro. Apuração e depuração dos métodos. Alguém, ou alguma instituição específica, que possa certificar-lhes se estão ou não aptos para exercerem tais profissões. Se eles serão maus, bons ou excelentes profissionais, só o tempo e os seus possíveis sucessivos erros lhes dirão e, mesmo assim, no caso hipotético de tornarem-se péssimos nos seus ofícios, ao menos foram submetidos a um pressuposto obrigatório: só puderam ser ruins porque tinham autonomia para sê-lo. Arcarão ( dependendo do caso, até judicialmente) com a responsabilidade de não fazerem juz ao reconhecimento profissional que lhes foi imputado. Não é? Tal como fiz, me fudendo pra cacete, para me tornar um técnico em Controle de Qualidade.

Então, mermão, diga-me uma coisa: o que faz com que uma pessoa, quando é, por exemplo, apresentada a outras numa mesa duma birosca, tenha a cara-de-pau de autodenominar-se como poeta, filósofo ou intelectual ?

- Prazer, Paulo O Poeta!

ou inda

- Oi, sou Afonso. Filósofo!

Isso é profissão? Ele vive disso? Tem certificado ? Vai tomar no buraco do cu! Tá bom. Pra não dizer que é implicância nem inveja minha, consideremos que ( por mais remoto que seja) algum desses “profissionais” viva da sua profissão. Poxa, eu sei que você não conhece e nunca soube de um filósofo ou poeta que vivam disso, de poetizar ou filosofar, mas é só uma hipótese. Então, continuando; vamos supor, por exemplo, que o tal “poeta” faça as suas poesias e descole um troco com elas. Consiga viver vendendo-as. Passou a ser uma profissão, não é? Dá lucro, portanto consideremos como profissão. Se é uma profissão, onde ele produz, divulga e vende um produto, então podemos compará-la a uma indústria. O produto ( o poema) sai da linha de montagem ( a “criatividade” e “peculiar visão de mundo” do poeta) e submete-se a estratégias de marketing e publicidade para que possa ser conhecido pelo grande público ( a leitura em praça pública e nos barzinhos de fragmentos dos poemas) e finalmente ser consumido ( a venda de mão em mão dos poemas em redutos boêmios, portas de teatro, posto 9, etc..). Beleza! Tudo certinho né? Calou a minha boca. Se o poema passa a obedecer as regras de um produto como outro qualquer que seja industrializado, então o autor do mesmo pode ser considerado como um profissional. “Um industrial das palavras” diria o próprio poeta, poetizando, todo orgulhoso de si. Mas nesse porém há um outro importantíssimo porém: deixei de mencionar, propositalmente, é claro, uma etapa do processo industrial de seminal importância para o produtor, para o produto e para o consumidor : o CONTROLE DE QUALIDADE DO PRODUTO. E dessa parada eu conheço. Toda indústria que queira solidificar-se no mercado deve submeter-se ao rigoroso Controle de Qualidade do Produto. Testes e mais testes, repetitivos processos de aferições de qualidade, incessantes medições, teste de eficiência, potencial de durabilidade, cotejamento com a qualidade de outros produtos similares, mas já respeitados no mercado ( e a busca incessante - após análises dos melhores produtos concorrentes - de superação, de uma fórmula inovadora ou de uma fórmula, até clássica, mas mais eficiente ) e submetimento do produto a órgãos idôneos e respeitadíssimos que, após a constatação de todos esses métodos, que credenciam-no com “QUALIDADE COMPROVADA”. Será que o tal poeta passou por isso também? Ou o pensamento do auto-proclamado filósofo, ou os questionamentos do dito intelectual?

Porra nenhuma!

Te garanto, porra nenhuma.

E tem mais: se, por acaso, um industrial chega à nossa mesa em um bar e nos é apresentado:

- Esse é o Flávio, industrial .

Nós ouvimos a informação de que ele é um industrial, mas não nos interessa ou nos passa despercebido qualquer especulação da qualidade da sua profissão. Não pensamos: “Será ele um bom ou mau industrial?” Apenas ouvimos “Esse é o Flávio, industrial ” ( ou o que quer que seja: professor, jornalista, engenheiro, advogado...) e pronto! Continuamos o assunto sem fazer qualquer julgamento de qualidade e de valor de sua profissão.Agora, perceba quando alguém apresenta outrem como “poeta” ( ou filósofo, ou intelectual...)

- Conhece Narciso o poeta?

Não é estranho? A palavra poeta traz uma carga semântica que, quase sempre, é entendida com adjetivo. Ainda que seja um substantivo. Mesmo se a “profissão” for a de poeta, poetizar, escrever e vender poesias. Confunde-se com o “poeta” adjetivado :

“Narciso é um verdadeiro poeta!”

ou seja; Narciso tem a imaginação inspirada, Narciso é dado a devaneios líricos e idealistas.

Quando alguém diz “ Conhece Narciso o poeta?” , imediatamente vem a mensagem subliminar “ Conhece Narciso o BOM poeta?”. E as menininhas, patricinhas, lindinhas, arreganham as pernas pra esses escrotos. Vão ao delírio quando ouvem:-

-Esse é o Nicão filósofo.

- Azuil, intelectual, ao seu dispor.

Vai pra casa do caralho todos esses poetas, intelectuais e filósofos babacas. Não é inveja não. Eu sei das minhas limitações e nunca me meteria em participar desse time. Eu só sei que eu sou um merda de um Técnico de Controle de Qualidade que trabalha pra caralho, quarenta horas semanais, faço três turnos na fábrica e ralo pra cacete pra conseguir, raramente, levar uma baranga prum hotel fuleiro daqui da Lapa. Sou um merda, eu sei. Um fracassado. Então, jovem leitor dessas preciosas linhas, se vier aqui pra Lapa, nunca queira se autodenominar um poeta , ou um filósofo, ou um intelectual.

Tô lançando um manifesto:

CARTA A UM JOVEM MERDA

Artigo 1 - Chame-se de Merda com “M” maúsculo. Apresente-se, peito estufado, sempre, como “O Merda”:

-Oi, eu sou o Zé, O Merda.

Artigo 2 - Se você for sentar-se na mesa onde estejam alguém como o Narciso o poeta, Nicão o filósofo e Azuil o intelectual, tire proveito disso. Apresente-se já anunciando “Oi, eu sou o Zé, O Merda”. Os três ficarão imediatamente com pena de você, pagarão muita cerveja para você, e os mais dados a especulações psicanalíticas ( Todos, no caso. Bem próprio dessa raça! ) acharão que você sofre de algum distúrbio de auto-estima e farão de tudo para tentar agradá-lo. A aporrinhação vale as cervejas e o papo bizarro ainda lhe proporcionará umas gargalhadas internas.

Artigo 3 - Meu caro jovem merda, tenha em mente uma coisa importantíssima: o poeta, o filósofo e o intelectual pertencem a uma espécie desagradável, mas até risível e ingênua de certa forma. Dá até para aturá-los. Mas fuja , de qualquer maneira, mantenha distância, daquele que se auto-proclama “artista”. Esse é perigosíssimo. Tem delírios de grandeza, é agressivo , julga-se incompreendido. Em um estágio mas acentuado, quando não cabe mais em si de tanta arte, ele ( o artista ) deixa de chamar-se de “ artista” e passa a falar do artista ( ele mesmo) sempre na 3ª pessoa. “O artista sofre”, “O artista é um paria nesse mundo de superficialidades”, diz o artista de si mesmo numa roda de conversa, a todos pulmões. Sinistro.

Artigo 4 - Pior do que isso, só mesmo quem se chama de “Gênio”, o inimigo número 1 do “Merda”. Nem por uma Boemia geladinha dá pra aturar!”

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